“No começo eram flores, carinhos, parceria e compreensão, mas, na verdade, era só o início do jogo”, relata a jovem ouvida pela reportagem. Ela sofreu violência psicológica e patrimonial em um relacionamento abusivo. Com o apoio de uma psicóloga, conseguiu reconhecer que o então companheiro era tóxico, mas só depois de ele ter realizado diversos empréstimos em seu nome, sem o seu consentimento.
A jovem conta que só começou a perceber a violência patrimonial após cinco meses de relacionamento, embora os abusos tenham começado cerca de dois meses depois de conhecer o homem.
Quando passaram a morar juntos, ela vendeu móveis com a justificativa que era para juntar dinheiro. No entanto, como o homem ajudou na venda, foi ele quem ficou com o valor arrecadado, alegando que compraria algo para a casa. Segundo a vítima, essa foi a primeira violência sofrida e não percebida na época.
Apesar do curto tempo de convivência, o homem sugeriu transferir o carro dele para o nome dela e mudar para um local melhor. Cerca de três meses depois, abriu uma conta bancária em nome da companheira com a justificativa de que isso ajudaria a aumentar o score de crédito dela. No entanto, a mulher não teve acesso à conta, nem ao dinheiro da venda dos bens, que também não foi dividido.
“Sempre eram palavras para me mostrar a possibilidade de um crescimento material, tentando me enganar que com ele eu conseguiria o que queriam como trocar de carro. Como minha psicóloga explicou, é como se, desde o primeiro momento, ele tivesse anotado num caderninho todos os meus sonhos, vontades e medos”, relembra.
O casal se mudou para uma casa maior. Apesar de arcar com os pagamentos, o companheiro constantemente jogava isso “na cara” da parceira. Depois, ele comprou outro carro, também registrado no nome dela.
Sempre que ela pedia que os veículos fossem transferidos para o nome dele, o homem reagia com raiva, xingamentos e repressões. Depois, se acalmava, pedia desculpas e oferecia presentes, tentando apagar os abusos. Esse ciclo se repetiu por meses, entre brigas e promessas de mudança.
A jovem relata ainda que o homem cogitou ou realizou investimentos, todos em nome dela. “Com cinco meses de relacionamento, descobri um empréstimo que ele fez sem a minha autorização. Fiquei literalmente em choque quando vi a mensagem automática no meu celular”, relata. Ela descobriu que ele havia feito outros quatro empréstimos e um cartão de crédito usando seu CPF. Ao confrontá-lo, ouviu que era “um investimento para o casal”. Quando insistiu nas perguntas, ele mudou o tom e respondeu com xingamentos por áudio.
“À noite, ele veio com todo o roteiro pronto novamente: desculpas, presentes e a admissão do erro. Mais uma vez, a promessa de tirar tudo do meu nome, o que nunca acontecia”, lembra. A partir desse episódio, ela procurou ajuda psicológica e identificou que estava presa em um ciclo de violência patrimonial e psicológica.
Mesmo querendo terminar, sentia-se como se estivesse tentando correr enquanto ele a puxava de volta. As manipulações aumentaram. Em meio a promessas de mudança, veio a proposta: a casa dela em troca de um casamento.
“Tudo que eu construí sozinha, ele queria tirar de mim. Eu precisava sair, mesmo sofrendo. As coisas no meu nome me prendiam a ele. Resolvi desapegar desse medo com a certeza de que teria paz”, desabafa.
A jovem conseguiu encerrar o relacionamento e tenta recomeçar, mesmo enfrentando dívidas deixadas pelo ex. A psicóloga Isabelle Baioni explica que, assim como outras formas de violência de gênero, a patrimonial costuma começar de forma silenciosa, muitas vezes disfarçada de cuidado.
“Quem escolhe esse tipo de violência pode mascará-la como um ‘cuidado’ com as finanças da casa, controlando todo o dinheiro, mesmo que a parceira execute tarefas domésticas não remuneradas, ou retendo o salário dela em uma das contas do casal”, alerta.
Segundo Isabelle, a violência patrimonial ocorre em ciclos: da explosão à fase da “lua de mel”, quando o agressor pede desculpas, promete mudanças e a mulher, emocionalmente envolvida, acredita. Mas, com o tempo, os abusos se repetem.
Ela ressalta ainda que essas violências são sustentadas por construções sociais que colocam a mulher em papéis de mãe, cuidadora e mantenedora do relacionamento, o que dificulta o rompimento. “É muito difícil essas mulheres saírem porque elas são incentivadas pela sociedade a funcionarem dentro desses dispositivos amoroso e materno. E os comportamentos avessos a isso são muitas vezes até demonizados, no caso da igreja, são julgados como intolerantes, coisas que mesmo com as violências explícitas”, afirma.
Casos como falta de pagamento de pensão como forma de controle, destruição ou furto de documentos, retenção de dinheiro, estelionato, privação de bens ou danos a objetos da mulher também configuram violência patrimonial.
Assim como no relato da jovem, a psicóloga destaca que esse tipo de violência pode causar medo, angústia, ansiedade, tristeza e até culpa, já que muitas mulheres se responsabilizam pelo comportamento dos agressores. A violência patrimonial pode também ser silenciosa, e muitas vezes apoiada pela sociedade que coloca o homem como o cuidador das finanças, e por isso dificulta a saída das mulheres dessa situação.
Esse tipo de violência pode se caracterizar como apropriação indébita do patrimônio, estando previsto no artigo 168 do Código Penal. Essa e outras violências podem ser denunciadas através do Disque 180, voltado para mulheres, ou do Disque 100, dos Direitos Humanos.
Segundo site da Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública), já foram registrados 7.566 casos de violência doméstica em Mato Grosso do Sul este ano. Em 2024, foram 20.847 registros.
*Com CampoGrandeNews
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.