Nova “corrida do ouro”, a celulose levou emprego, renda e prosperidade ao Leste de Mato Grosso do Sul e firma-se como commodity que gera divisas e alavanca as economias do Estado e do País. Mas nem tudo são flores: esse colosso custa pesada renúncia tributária e grandes financiamentos de bancos públicos.
Em entrevista à reportagem, o economista Juliano Goularti, doutor pela Universidade de Campinas (Unicamp), questiona a “canonização” da narrativa que enaltece apenas emprego e renda diante de um modelo econômico que tem baixa contrapartida social e desenvolvimentista. Ele põe o dedo na ferida e critica a falta de fiscalização estatal sobre uma alavanca cara ao erário.
“Somente em 2023, que tem números muito parecidos com 2025, Mato Grosso do Sul abriu mão de R$ 5,6 bilhões em renúncia tributária, o equivalente a 25% de sua receita potencial”, disse. Para o economista, o setor convive com uma estrutura de incentivos que favorece poucos e grandes grupos, enquanto a fiscalização sobre contrapartidas é frágil ou inexistente. “Os órgãos de controle, como o Tribunal de Contas e as Secretarias da Fazenda, não acompanham o destino final dos benefícios fiscais concedidos”, afirma Goularti, que tem teses e livros publicados sobre o tema e é também assessor da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco).
Conforme balanço do especialista, em uma década, de 2010 a 2020, Mato Grosso do Sul deixou de arrecadar cerca de R$ 17 bilhões, enquanto, no país, somando renúncias de todos os Estados, o Brasil abriu mão de R$ 2,5 trilhões. Em 2023, ano sobre o qual há dados mais confiáveis, foram exatos R$ 242 bilhões em renúncias no Brasil. “Esses R$ 17 bilhões de incentivos fiscais concedidos em uma década em Mato Grosso do Sul são, em essência, uma transferência de dinheiro público para a iniciativa privada.”.
Toda a produção das duas gigantes do setor em operação em Mato Grosso do Sul (Suzano e Eldorado), assim como a previsão em relação as demais (Arauco e Bracell) é para exportação.
No Estado, o maior peso de renúncias beneficia a silvicultura e a agropecuária. Faltam números oficiais que recortem a celulose do conjunto de isenções, mas há consenso entre economistas de que ela, isoladamente, já supera R$ 1 bilhão por ano.
“Não podemos entender toda essa política tributária como um dispositivo automático de investimento, emprego e renda, como se fosse um interruptor: você liga e o investimento acontece. Não existe essa correlação.”
Juliano frisa que um dos grandes equívocos dos governos ao abrir mão das receitas, foi não ter exigido contrapartidas do empresariado nem monitorado os investimentos prometidos. “Esse benefício fiscal tem que gerar diversificação industrial, novos negócios, startups, e não ficar concentrado em uma única empresa.
Senão, quando há crise, toda a região sofre.” Para o economista, os efeitos dos projetos que mudam estruturas socioeconômicas regionais são lentos, pequenos e sugerem uma pergunta inevitável: “O Estado melhorou em IDH, em renda, em complexidade industrial, na mesma proporção da renúncia fiscal? Não melhorou.”
Celulose desbanca soja e muda o perfil do MS
A pujança do setor é inegável. A celulose já desbancou a soja em importância na balança econômica de Mato Grosso do Sul e deve assumir o topo da produção no Estado em 2026, superando Minas Gerais no ranking nacional. Com extensão territorial estimada em 1,7 milhão de hectares plantados na região Leste do Estado, grandes projetos mudaram a estrutura fundiária, alteraram o ecossistema – secando nascentes, inclusive – a paisagem e as economias locais de municípios como Três Lagoas, Ribas do Rio Pardo, Bataguassu, Água Clara e Inocência.
“O Estado financia toda a cadeia do agronegócio, desde a terra até a exportação, com isenções. Mas sem contrapartidas, o ciclo se repete, e o retorno em desenvolvimento para a sociedade é mínimo.”, afirma Juliano Goularti.
Para o economista, os números precisam ser contextualizados e acompanhados para que se entenda o resultado das ações fiscais e de desoneração tributária como ferramenta eficaz na distribuição da renda ou justiça tributária. Atualmente, diz, as renúncias viraram “um instrumento de política econômica utilizado para a transferência de renda do setor público para o privado sem qualquer tipo de contrapartida social do capital”.
Entre 2003 a 2020, conforme dados da Receita Federal o volume de desonerações no Brasil cresceu de 1,7% para 4,45% do PIB, somando R$ 331,2 bilhões em 2020, recursos que segundo o economista foram usados como instrumento de redução de custo de produção e elevação das margens de lucro de grandes grupos.
“Ao contrário da propaganda empresarial, a redução de impostos não resulta, necessariamente, em investimentos privados para o desenvolvimento do país”, diz o economista. “O Brasil regrediu industrialmente porque priorizou a expansão do agronegócio e das commodities, mas a indústria é quem gera salários melhores, arrecadação tributária e complexidade produtiva.”
O peso fiscal da celulose no Estado
O agronegócio (agricultura, pecuária, produção florestal - celulose, pesca e aquicultura) concentrou 55,81% de todas as isenções em 2023, somando R$ 3,119 bilhões, o equivalente a 25% da arrecadação estadual. No primeiro semestre deste ano, conforme dados da secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação (Semadesc), a celulose assumiu a ponta das exportações, com US$ 1, 73 bilhão em vendas, o equivalente a 32% da totalidade dos produtos embarcados e um aumento de mais de 65% em relação ao mesmo período do ano passado.
Os incentivos incluem isenções de ICMS na exportação, isenção sobre insumos, energia e logística, além de financiamentos subsidiados de bancos públicos, compondo um pacote de vantagens que garante competitividade ao setor em detrimento da arrecadação estadual.
“O Estado financia toda a cadeia produtiva do agronegócio com isenções, desde a terra até a exportação, mas não exige contrapartidas das empresas”, reforça Goularti. “Você pode dar um incentivo de milhões, mas se a empresa não tiver expectativa de lucro, ela não investe. O que muitas fazem é usar o benefício para reduzir o custo de produção e aumentar a margem de lucro, sem fazer o investimento prometido.”
Goularti explica que o sistema tributário atual reforça desigualdades: “A estrutura corrobora para a concentração de renda, agravando o ônus fiscal dos mais pobres e aliviando as camadas que habitam o andar de cima.”
Investimentos e geração de emprego
O governo estadual contabiliza seis unidades industriais até agora, responsáveis pela produção de árvores de eucalipto distribuídas em 1,690 milhão de hectares. Essa projeção considera a fábrica da Bracell, em processo de licenciamento em Bataguassu, com investimento previsto de US$ 4 bilhões (cerca de R$ 25 bilhões). A construção da nova unidade prevê criar 12 mil empregos no pico da obra e 7 mil vagas fixas.
A fábrica é desenhada para ser uma das maiores da América Latina, com capacidade de 2,6 milhões de toneladas ao ano. A projeção do governo local considera também uma nova unidade da Eldorado, anunciada no mês passado para ampliar a produção em Três Lagoas, um mês após encerrar a disputa judicial com a Paper Excellence.
A empresa retomou oficialmente o projeto de expansão da sua fábrica e solicitou nova licença ambiental para investir R$ 1,9 bilhão. A meta é elevar em mais de 140% a capacidade de produção, consolidando ainda mais o município como polo estratégico do setor.
Estudo da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá) aponta que as novas fábricas em construção devem gerar, até 2032, cerca de 100 mil novos empregos, o equivalente a mais de 10 mil contratações anuais, em média.
No Leste do Estado, a expansão da celulose altera radicalmente a paisagem com a monocultura, gerando uso intensivo de água e pressões sobre os territórios, sem necessariamente trazer ganhos proporcionais para a maioria da população. Embora o setor seja relevante para a balança comercial, Goularti alerta que há riscos de dependência de um único produto e de vulnerabilidade social e econômica quando o mercado oscila.
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