"Sequelas devastadoras" elevam penas de pais condenados por estuprar filhas

Sentenças descrevem traumas que levam à automutilação, tentativa de suicídio e repulsa ao próprio corpo

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Deusa da Justiça, monumento em frente ao Fórum de Campo Grande (Foto: Henrique Kawaminami)

Dois julgamentos recentes em Campo Grande que tratam de violência sexual contra criança no ambiente familiar revelam, com detalhes, que as marcas emocionais de um estupro ultrapassam qualquer pena. Em um processo, a vítima relatou automutilação, repulsa ao próprio corpo e tentativa de tirar a própria vida. Nos dois casos, os réus são pais da vítima e receberam punições elevadas, inclusive com indenização por dano moral.

As sentenças mostram que a violência sexual praticada dentro de casa não só rompe vínculos de confiança, como desencadeia sofrimento psíquico que a Justiça reconhece como grave e permanente.

Em um dos casos, referente a estupro em 2019, a Justiça registrou que, após os abusos, a vítima passou a se ferir, fez cortes pelo corpo, desenvolveu nojo de si mesma e tentou o suicídio. Esses efeitos foram descritos pela vítima em delegacia e confirmados em juízo, além de corroborados pela mãe. O juiz considerou essas consequências “demasiadamente agravadas” e usou esse fator para elevar a pena acima do mínimo legal.

As duas decisões deixam claro que o vínculo paterno e o fato de morarem na mesma casa são agravantes. No caso em que as sequelas foram narradas com crueza, o próprio relato da vítima também foi decisivo para aumentar a punição. Ambas as decisões aplicam o art. 217-A do CP (Código Penal), que trata de estupro de vulnerável, com pena mínima de 8 anos. A partir daí, cada uma detalhou aumentos conforme as circunstâncias do caso.

"Dosimetria " - No primeiro processo, a pena começou a ser dosada em 8 anos de reclusão (base para o crime), mas foi aumentada porque o juiz considerou as consequências excepcionais sofridas pela vítima, como automutilação, repulsa ao próprio corpo e tentativa de suicídio. Esse acréscimo levou a pena para 8 anos e 10 meses.

Em seguida, a Justiça avaliou que o crime foi cometido dentro de casa, onde a vítima deveria estar protegida, o que elevou a condenação para pouco mais de 10 anos. O fato de o agressor ser o próprio pai resultou em novo aumento, chegando a 15 anos e 5 meses. Por fim, como os abusos aconteceram em diversas ocasiões, a pena foi novamente ampliada e alcançou 18 anos e 12 dias de prisão em regime inicial fechado.

Além da reclusão, o homem foi condenado ao pagamento de R$ 10 mil por danos morais e também das custas do processo. O juiz negou a substituição da pena por medidas alternativas, diante da gravidade e da violência do crime.

No segundo julgamento, a pena foi fixada inicialmente em 8 anos. Assim como no primeiro caso, a Justiça aumentou a condenação porque o crime ocorreu no ambiente doméstico, resultando em 9 anos e 4 meses.

O agravante, por se tratar do pai da vítima, fez a pena subir para 14 anos de prisão em regime fechado. Também foi fixada indenização de R$ 10 mil a título de dano moral, mas as custas processuais ficaram suspensas porque o réu comprovou não ter condições de arcar com o pagamento. A substituição da pena por medidas alternativas também foi rejeitada.

Por que um recorre solto e o outro fica preso?

A diferença está na avaliação de risco. No primeiro caso, o réu acompanhou todo o processo em liberdade e não houve novo fundamento para prender após a sentença. A lei permite, nessa situação, que ele recorra solto. No segundo, a prisão preventiva já estava decretada, e a sentença reforçou os motivos para mantê-la.

Trata-se de um ponto sensível, que costuma gerar debate público. As decisões lembram que não basta a condenação para prender nem a sentença para soltar. O que vale são os fundamentos concretos previstos no CPP (Código de Processo Penal) e reiterados pelos tribunais.

Estuprador dentro de casa - Dados de 2025 revelam um retrato alarmante da violência sexual em Mato Grosso do Sul. Do total de 1.273 estupros registrados no ano, 1.027 tiveram como vítimas crianças e adolescentes, o que corresponde a 80,6% dos casos. O dado mostra como a vulnerabilidade de meninas e meninos segue sendo explorada em situações que, muitas vezes, se repetem de forma continuada.

Um dos pontos que escancara a gravidade do problema é o local onde a violência acontece. Em 821 registros, equivalentes a 64,5% do total, os estupros ocorreram dentro da própria casa da vítima, espaço que deveria oferecer proteção, mas se transforma no cenário de maior risco.

A sobreposição desses dois fatores, vítimas em idade escolar e crimes cometidos no ambiente doméstico, reforça o padrão de violência intrafamiliar que desafia políticas públicas de prevenção e proteção. Especialistas apontam que, além do acolhimento imediato, os sobreviventes precisam de acompanhamento psicológico de longo prazo, já que os traumas vão muito além do momento da agressão.

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